quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Na tua pele

Na tua pele
Meu apelo
Infausto, infame

Na tua pele
Teus pelos:
Porquês e ternura

Portantos mais que tantos
Veem a cama
Vêm à tona

O milagre da multiplicação
Dos aromas, dos tons
Vagos, vãos

Mãos
Tomam tua pele
Tateiam teus pelos

Desejo da carne
Desejo do seio
Vindo à boca

Vinho tinto de ti
Taça do teu corpo
Disposto roto

Como calha, simples:
Corpo todo
Corpo nu.


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domingo, 31 de julho de 2011

Bons dias

Direi bom dia aos bons,
Em caso de dúvida.
Não pretendo cometer injustiças
Nem tampouco ser dos que se veem cercados
Pela bolha intrincada das relações humanas.
Faço parte, não se questione jamais,
Da maioria, do chulo
E, se escolhi ser um de seus adidos,
Serei um de seus melhores,
Um de seus capitães.

Direi bom dia aos bons,
Às ordens da casa.
O abre-alas vindica a mais torpe idiossincrasia,
A do cabresto.
Será elevada à baluarte de nossa época,
Será cultuada feito a falaciosa abstração da divindade.
Esqueceremos as verdades superficiais
Para sermos profundamente supérfluos,
Pregados as cadeiras elétricas libertadoras,
Diante do telejornal da nação Sem Nome,
Sem Fundos, Sem Fala.

Direi bom dia aos urros,
A plena voz, aos arranques de pulmão
Acima dos portões de entrada
A fim de que se entreouça e veja minha [in]feliz saudação.
[A mais vil e rasteira suposição
Foi tomada ao pé da letra
E que será de nós?]

Faltam poucos minutos para o meio-dia
E já não mais poderei dar-lhes meus sinceros e despretensiosos
"Bons dias".
Em caso de dúvida,
Obedecendo às ordens da casa,
Empostando a voz para proferi-lo com clareza,
Anseio pelo momento em que nascerá o novo dia
E não serão necessários adjetivos a contemplá-lo
Vaga e amargamente,
Sendo desejo o simples
Abrir de olhos.

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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Casa

Voltou, e era como se nunca a houvesse deixado para trás. Resistia, estoicamente, feito um sonho de tempos idos, do menino perdido nalgum recôndito da memória, a casa caiada da infância, com suas janelas pequeninas, sua varanda esverdeada pela invasão da mata a verter em derredor, seu cheiro de terra boa, sua aura indissociável de paz. Desde que se lançara à ventura, buscava, sabe-se lá se conscientemente ou não, algo parecido com o que vivera e sentira ali, àquela época, e agora, já velho, já avô, já distante do moleque travesso de seu avô, consentia que a vida sua, a única que lhe fora permitida conhecer ao dobrar das páginas amarelas de anúncios, fora talhada na madeira desta casa, no assoalho deste chão.
Ainda jovem, imaginara um mundo vasto a ser desvendado, esmiuçado, explorado pelo fulgor de seus poucos anos: visitara, desta feita, as capitais da moda, da futilidade; contemplara os palácios de pedra e ouro; sentara-se à beira do último rio do globo; amara à sombra do primeiro outeiro da Terra, e quê? E quê? Do que vira e ouvira, sentira e prescindira, dissera e desdissera, resignara-se à impressão de que tudo não passava da repetição dos atos mecânicos do cotidiano, do óbvio. Admitira, com pesar, sua impotência diante da massa disforme que desfaz e corrompe os sonhos, os ideais, os escrúpulos - "Como isso, visto daqui, parece desusado, descabido, sem pé nem cabeça!". Os olhos cansados desejaram, então, a calma, o sossego, o fim - não tão já, mas ao menos o lugar em que se prepararia a cama, a comida, o banho quente para a tão almejada paz. Os olhos cansados, o corpo cansado, a mente esquecida, a boca seca, os ouvidos moucos, os gestos vacilantes, as palavras cada vez mais raras à língua, desejaram, então, a casa, Sua Casa.


...

"Vê, se podes!
É a casa caiada de teus pais.
É, se não percebeste até este instante,
teu lugar,
tua firma,
tua explicação.
Não podes encontrar o que buscas,
não sabes ainda o que buscas:
não entendes o conjuro das estrelas
que formam teu nome.
Aqui, onde fincaste pé,
onde premeditaste o regicídio vaticinado pelas emissoras de TV,
onde escreveste as cartas magnas da insurreição dos oprimidos,
onde tens pregado nas paredes os sistemas econômicos e sociais do futuro,
as inflexões dos verbos irredutíveis,
onde tens sido tanta coisa que não saberia definir-se,
deixaste de ver.
Tu te tornaste o que sempre repudiara
e já não podes enxergar
que a felicidade é feito um sonho da infância
em que se divisa a casa caiada de quando menino,
com seus olhos miúdos,
sua matiz dos campos,
seu olor desprendido do orvalho da noite
e seu hálito incomunicável
que é a própria paz."

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sábado, 16 de julho de 2011

Teogonia

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Há de haver paciência no desespero
Há de haver compreensão no inominável
Há de haver virtude na ignomínia
Há que ser todas as coisas
Sendo pó

E do pó erigir nosso obelisco
Nossa pedra angular
À forja das espadas
À guisa das esperas.

Há que se deslindar o último novelo
Puxando pela ponta do falseio
O resquício da palavra que buscamos
E não ousamos pronunciar.

Há que seguir, indivisível:
Sãos e naturais da estrada partida ao meio
Em que se bifurcam, para sempre
O paraíso e a calma
Da plenitude e ventura

E da ventura e plenitude
E do paraíso e da calma
Colher, ao menos
A derradeira planta originária da terra
Pretérita e ignota.

"Observe, filho!
Nas mãos se esconderam, pequenas
As linhas ilegíveis do cosmos:
Somos, agora, o mesmo
Ainda que sejas pai.
Somos, embora os mesmos
Eu e meu único filho."

...

domingo, 10 de julho de 2011

A Perda

...

Não, não foi exatamente o que me ocorreu. Mesmo que os sinais se dispusessem às alvas vistas, era diferente, era novo. Contrariava o pessimismo da última escrita, o Sacro Sacramento investido e deduzido à força pelas mãos da Santa Sé. Não era o espasmo premonitório dos Xamãs nem a nesga da porta entreaberta nem a pretensa sabedoria dos seguidores da fé. Deu-se pela distância, pela perda e pela ignorância nos desígnios do amor. 
Casualmente, compreendeu-se que havia no passado, agora longínquo, uma percepção pequena do fato, obnubilados, talvez, estivéssemos pela paixão pueril que nos acometeu. Éramos ainda fruto não colhido, ansiosos à espera das mãos que nos trariam à mesa, à vida, para que saciássemos as ávidas e mortais bocas. Mas não devamos a isso a negligência, a temeridade, a iniquidade do nosso ato. Saiba-se que, de minha parte, a culpa há tempos se abateu. É espantosa a forma com que os dias se sucedem e as faltas, farpas e falhas amplificam-se, mistificam-se, tornam-se insustentáveis. Passam pelas retinas, intermitentemente, as imagens insidiosas, paisagens da existência que não se permitiu nascer, abortada precocemente. Esta foi a melhor escolha? Restou, tardiamente, a ponderada visão do todo, sem que se chegasse a qualquer conclusão. Afinal, nunca saberemos em qual destino daria a outra vida. Quem sabe a próxima parada fosse o nada, tal qual esse nada que hoje nos engole e nos despoja.

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sexta-feira, 20 de maio de 2011

Brevidade

Contanto que seja breve,
Conte-me algo, uma estória, talvez.
Mas que seja breve!
Enfastiam-me as descrições pormenorizadas dos enganos alheios,
As filosofias que não são minhas,
As crenças desse velho mundo doente que insistem em chamar de moderno
E todo esse embuste literário
Cheio de vírgulas deslocadas
Que querem que eu engula no jantar
[Ao menos houvesse algo para beber...].

Ou melhor, tragamos à mesa uma conversa
Dessas rasas, insubstantes.
Falemos de futebol, de mulheres,
Da política externa e dos rombos nos cofres públicos:
Não chegaremos a lugar algum.
Sabemos das amenidades o suficiente para nos entreter
Enquanto o garçom não chega com a outra garrafa.
Dirão, veja só, que somos homens de pouca profundidade.
Uma ova!
Que se danem os "pseudos" da vida e suas tentativas frustradas
De serem levados em conta.
E depois, se não falarmos do óbvio,
Falaremos de quê?

No fim da noite, ao cabo de tudo,
O que restará será só a noite.
Será a noite a angústia de sempre,
A incerteza dos anos,
A vontade de não sei o quê,
A tristeza de há não sei quando
   E, maior do que tudo,
            Será a noite apenas

                               Um vento
                                         Breve.


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quinta-feira, 19 de maio de 2011

Carta II

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Havia certa melancolia naquela caminhar lento e aparentemente distraído. Media os passos pelos ladrilhos da calçada e, como para desafiar-se num jogo mental, por vezes mudava a rota repentinamente. Para um observador mais atento, era fácil notar que, em cada mudança, havia um método, o que fazia com que parecesse premeditada e, consequentemente, sem nenhuma surpresa. Era nesse constante círculo, chamemos de vicioso, em que vivia. Suas ações, ainda que causassem espanto, eram sempre meticulosas, fáceis de se prever. Um caso a ser estudado. O que será que pensa? O que será que o move? Vez ou outra viu-se encurralado por estas e outras questões de densidade filosófica duvidosa e safou-se com um redondo "Não sei". "Sujeito desagradável", retrucavam pelas costas os que, fazia pouco, se riam das piadas sujas, as que mais lhe agradavam por lhe serem tão familiares, soltas durante a conversa. Na verdade, o que era ou o que o movia claro estava para si há tempos, mas passava longe das palavras ou chavões de escritor de quinta aos quais se costuma recorrer à solta nas mesas de bar. Na verdade, era por saber-se tão clichê, tão lugar-comum, tão novela das nove, tão escritor de quinta que preferia manter-se calado ou munir-se do laconismo, seu novo e preferido gênero literário. O que sabia em si era tristeza e esperança, esta última que não vai deixar-lhe nunca. A tristeza, não se sabe se irá um dia partir.

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quarta-feira, 13 de abril de 2011

Convicções

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"Evidente que sim", foi a resposta. Era difícil crer que houvesse qualquer resquício de sentimento no que outrora fora, dito pelas benditas bocas e línguas, um grande e definitivo amor. Findo este, não por completo, dado o tom peremptório das palavras iniciais acima, o que não se sabe quando nem como aconteceu, pairou a dúvida, a incerteza, alinhavada pela segunda vogal de nosso idioma, aquela que, procedida por um sinal interrogativo, tem o poder de esmiuçar os porquês dos mais profundos questionamentos: "E?". O fim não seria algo trágico, talvez desesperador, uma busca de explicações para o inevitável, uma miríade de controvérsias impenetráveis à razão? De tudo, o que restou? Se não era amor, ora se não, impossível que não, o que seria, como poder-se-ia à flor da pele, do toque, do beijo, descrever, ou melhor, denominar a confusão de coisas que passam pela cabeça e que atordoam, rebatem, ressonam, duvidam até não se saberem mais cônscias de si nem de outrem? Disto, apenas um "E?" insolente, fático, conveniente, digamos, a encerrar o assunto. E ponto. Não se fala mais nisso.
Só a experiência ensina, dizem, mas o que realmente se aprende é insensível, invisível e prestará suas contas a um determinado tempo, imprevisível, aliás. Terão aprendido algo? Sim, pois se de tudo há uma lição, esta figura de retórica chamada amor não deixaria de trazer certo conhecimento. O quê, de fato, a algum momento da vida saber-se-á. Mas uma coisa é certa: enquanto houver a lembrança do vivido, lívido que seja, este amor, esta vida, aquela morte, também ela, e tudo o mais que se imagina pertencer à experiência humana perdurará no agora, ou seja, no sempre. E mesmo que insistam, destrinchem, questionem: "Onde é que tem amor nisso, companheiro?", afirmará, segundo suas vacilantes convicções, incontinenti: "No Agora, companheiro. Evidente que sim."

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terça-feira, 12 de abril de 2011

O último dia

Certos dias em que os odores incomodam
Os sons oprimem
O sal é ralo
O leve toque perfura os tecidos
Transpassa e inflige dor
E ver é a única razão
Pela qual se vale o trabalho
De viver.

Alguns dias em que as penas culminam
Os pêsames são adiados
Para um outro qualquer
E as palavras são simulacros
Indisfarçáveis simulacros
Pregando peças em transeuntes desavisados.

Conheces o medo
Conheces a dor
Já viveste a alegria
(Ao menos sonhaste com ela)
Compraste roupas, sapatos
Artigos de necessidade
Acessórios da modernidade
E continua a não compreender os homens
Continua a não compreender a si.

Há dias em que a poesia
É ver.
Há dias em que ver
É o último sopro
Produzido pelos pulmões cansados
Do árduo trabalho
De viver.

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Reminiscência

Inquieto
Procurava teu som em cada gesto
Esquecia teu cheiro na ponta dos dedos
Até perder-se no último expresso
Das lembranças que se findam na noite
Infinitas, as lembranças...
Eu em ti a trançar-te os cabelos
E por minhas mãos em que ora a vejo
Fazer recender o instante
Último e primeiro
Para além do caos de teu mundo

Incompleto
Perscrutava teus olhos no espelho
E nada me sabia no que via
Restava apenas o traço em vermelho
Deixado pelo batom de teus lábios
E teus lábios a fecharem-se
Teu corpo a fundir-se com o ar
Para que não te fosses possível o olhar
Para que se confundissem as estações
Invernos e verões
Indistiguíveis na órbita de teu planeta

Incerto
Errei pelas ruas de tua cidade
Encerrei nas celas do subsolo
Os amotinados que inadvertidos se fizeram verdade
E larguei-me a contemplar-te longe
Como alguém que longe
Divisa os montes de uma terra inexplorada
Tal o tempo em que a neve cerra geada
E plantei-me, e finquei chão
Onde me pusera a sentir-me
Ainda que senhor de mim,
Habitante de teu legado.

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segunda-feira, 21 de março de 2011

Vertigem

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Antes da queda, respirou fundo pela última vez, apertando os olhos para sentir o ar a encher-lhe os pulmões. Queria que as sensações finais se delineassem nitidamente, bem como nítidas se apresentavam as poucas nuvens que passeavam por sobre sua cabeça. Trazia a uma das mãos uma maleta pequena onde estavam seus objetos de trabalho: canetas, blocos de nota, o jornal da manhã e a indizível ânsia de desligar-se de tudo - da existência, principalmente. Na outra mão, pendia um copo vazio onde, havia pouco, depositara uma dose de café misturado ao whisky barato abrigado no paletó. Sorvera num só gole a bebida e achou que, por bem, deveria não beber mais a fim de manter-se escrupulosamente sóbrio. Não queria que seu ato fosse diminuído pela suspeita de embriaguez, apesar de não se lembrar quando fora a última vez em que o tinham visto completamente sóbrio. Proferiu palavras sem nexo, por certo alguns versos de seu poeta predileto, e deleitou-se ao ouvir a própria voz a antecipar as manchetes dos periódicos do dia posterior: o prazer mórbido suplantava o terror do desconhecido. Sempre quisera saber o que se passava na mente do suicida nos momentos que precedem a morte e espantara-se ao se deparar com um completo nada, um nada absurdo que o incitava a jogar-se, a dar cabo do reles amontoado de matéria que se julgava, a apagar para sempre a vaga esperança dos obscuros dias futuros. Atirou a maleta e o copo simultaneamente e os acompanhou com os olhos até chocarem-se contra o solo. Imaginava não mais sentir medo, frio, fome, angústia. Qualquer sentimento ou necessidade humana constituía outra coisa, outra coisa que não lhe fora dado anteriormente o privilégio de conhecer e a qual não podia considerar como sua. Cerrou mais uma vez os olhos (pela última vez). Desejou ser reconhecido mais uma vez (Olhem, aquele homem vai se atirar!). Persignou-se (pela última vez). Consultou o relógio (pela última vez). Recuou um passo. Pensou: "É agora!" E não foi. Um súbito pânico lhe acometeu, paralisou-lhe as pernas, cortou-lhe o ar. Deu as costas ao abismo e rumou para o trabalho maldizendo-se, maldizendo a vida e jurou por tudo que lhe era mais sagrado que havia feito aquilo pela última vez. Mais uma vez.

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quinta-feira, 17 de março de 2011

Mundo Moderno

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Homens que caminham indiferentes
Fumam seus cigarros e recitam a bula
Do último fármaco produzido
[Deu no jornal que não houve maior revolução medicinal, antropológica, quiçá metafísica em todos os tempos que a ensejada pelo remédio que promete curar todas as dores da vida]
Com ares de importância
E nem desconfiam que sejam a única verdade
Naquilo que se convencionou chamar
O Mundo Moderno.

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quarta-feira, 16 de março de 2011

Humano [Ad Eternum]

Eu estava lá quando tudo aconteceu
Vi o Verbo fazer-se Carne
Vi a Carne tornar-se eterna
Vi a Eternidade fulgir no terceiro dia
Para mitigar as culpas
Para mistificar o pecado.

Eu estava lá e fui um dos que O seguiram
Um dos que ouviram Seus ditames
Um dos que engendraram, com Ele, um novo mundo
E erigiram sonhos de Nova Era.

Eu estava lá e fui um dos que O apedrejaram
Um dos que vindicaram Sua morte em praça pública
Um dos que O traíram por 30 dinheiros
Um dos que O negaram por três vezes
E O atiraram à ignomínia.

Eu estava lá e fui fraco
Fraco como não podia ser:
Acorrentaram-me e não resisti
Aquiesci com os olhos e com o corpo
E com a falsa resignação que me foi ensinada
Procurei-me nos meus discursos e nos meus valores
E não encontrei no que disse nem a mim
Nem a explicação pras tais leis que me regiam.

Eu estava lá e cometi a maior das perfídias:
Desacreditei-me
E não me perdoei nunca
Por ter sido tão tolo
Por ter sido tão incansavelmente fraco
A ponto de abandonar-me
E, sobretudo
Por ter sido demasiado
Humano.
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quarta-feira, 2 de março de 2011

Hoje

Hoje
Temo a incompreensão
E para fazer-me claro
Reduzo a língua à boca.
Não ignoro o som que me trará
O vocábulo inexato
Despregado das paredes da memória
Mas também não o desejo.

Hoje
Não seguirei a métrica
Não procurarei a rima
Nos dicionários práticos da língua portuguesa
Os sinônimos pertinentes
Não me farão falta:
Subjugo-me ao antagonismo
Às antíteses
Aos paradoxos e à matéria
E desprendo deles
A ilusão de unicidade.

Hoje
Direi o que da língua
A boca me permitir
Diluindo em gotas
A panaceia amarga
Prescrita e assinada.

Hoje
E talvez não o faça
Expurgarei os quebrantos
E serei só
Sem eles, meu alimento.

Hoje
E apenas hoje
Desconstruir-me-ei
E farei dos escombros de mim
Minha poesia.

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sábado, 26 de fevereiro de 2011

Dia de Anos

A olhos nus
Não faria diferença tão corriqueira cena:
Os pais comemoravam os anos da criança
Sós
A casa toda ela vazia
A música displicentemente passeando pela garagem à fora
E um ruído de fundo:
Balões que se estouravam, rebentavam nas mãos da inocência.

Foi então que se descobriu o Segredo
Aquele que jamais se pronunciaria n'outros lábios
Senão nos da pureza:


- A felicidade deve ser isto:
Um estourar de balões no dia em que se faz anos.
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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Da janela do ônibus

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Da janela do ônibus
Eu traçava com os olhos linhas brancas no asfalto
E pensava nos seus ângulos retos inconclusos
Paralelos aos homens e alheios a si
Feito as coisas infinitas e tristes
Que não acham nunca seu começo ou fim.

Pensava, também
Na rua que passa pelas minhas linhas brancas no asfalto
E no senhor de cabeça baixa que leva o jornal
E nos carros que param e correm
E na gente que se esbarra e se atropela nas calçadas.
Quanto do mundo há nisso!

E enquanto pensava e via
Não deixava de crer que belas são as coisas
Por não serem mais do que deveriam ser
E que bela é a vida que passa
Vista da janela do ônibus
Por sobre as linhas brancas do asfalto.

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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Instante: Este

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E dirão: "És jovem, tens a vida" até quando? É efêmera, geniosa, contumaz, mas a tens. E que fazes? Ris. Um riso convulso, nervoso, abscôndito, com as mãos na boca, temendo não ter razão de ser, não ter para onde se estender. E dirão, também, a algum momento da tua juventude, que não há tempo, que o bonde, por Deus!, só passa uma vez e que as escolhas de hoje serão tua ruína ou teu deleite. E que dirás tu? Nada. Intuirás que o tempo é teu irmão e teu inimigo, teu conselheiro e teu algoz. Mais, que o que há do tempo, todo o passado e todo o futuro, converge sobre um único ponto, irreprimível, irredutível, indômito. 
[Não se pode fixar o instante e, se o pudesse, já não mais seria o Instante. Não belo ("a beleza", já o disseram, "é o nome de qualquer cousa que não existe" ¹), não sublime como cantam, por vezes cruel, insensível, entretanto, uno, indiviso.]
Dirás, por fim, que o que és, o que conheces, o que vês, é tudo o que sentes, o que crês, o que desejas e não existe senão num Instante: Este.

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(¹ Referência ao poema "O Guardador de Rebanhos" - XXVI, de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Bazófia

Não me venhas com tua física
Poupe-me de teu discurso exato
Das matemáticas inequívocas
Analíticas
Paralíticas
Da tua visão que atravessa os muros
Importa e instiga o ódio das nações
Insaciáveis
Irresolutas

A tua moral, a mim
De nada serve
Eu que não sei o que queres dizer
Quando falas de amor
Eu que não tenciono saber
O que pensas a respeito do amor

Levantas os braços aos céus
E cinges a Terra de virtudes
Os homens, de opróbrios
Como se não comungasse a carne
A ânsia, o câncer, a doença
A morte.

És cínico e pequeno
Posto que te sabes em mim
Mais do que imaginas;
Cantarolas, no tom que me exaspera,
A melodia da música divina
[E eu não a suporto];
Marchas com as mãos em riste
Beligerantemente frente às brigadas de fogo
Dos costumes contemporâneos

És amado e aclamado,
Benzido e engrandecido
E o que veem de mim
Que vou pelo lado oposto?
Apenas esse abafado clamor
Essa leviana acusação
Esse sopro de vida
Que não se sabe vivo
Esse sopro de nada
Que não se sabe vida.


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