quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Casual

No breu do quarto, duas bocas se procuram:
perdidas, esquivas, hão de encontrar-se
até o fim da noite.
O escuro há de permanecer,
o assombro de (des)conhecerem-se
não apaga o desejo.
Em instantes, exaustos,
estarão dispersos,
sós.
Sós, lado a lado,
mais desconhecidos do que nunca.
Compartilhado o gozo,
talvez outro gole,
outro copo,
e no álcool insípido da madrugada
(em que se depositou toda a raiva,
toda a desesperança,
em que a entrega se consumou,
corpo arfante à procura do sossego,
da paz que não virá, não virá,
não é a primeira vez que isso ocorre),
no álcool despir-se-á a memória.
Amanhã, a manhã morna de sempre
pela frincha da porta.
Nua, ela, nu, ele,
mais irreconhecíveis um ao outro do que nunca.
Mas não há do que se arrepender,
por que se culpar?
Pela frincha da porta ver-se-á
que o Amor, pedra angular da vida,
figura constante e inexpugnável de todos os dias,
imaginado distante daquela cama,
a quilômetros daquele impenetrável breu,
também pode ser, por que não,
Casual.


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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Eu Nunca Disse "Eu Te Amo"

"Afinal, o que eu posso fazer
Se não me lembro mais o que era antes
De te conhecer?"

Paulinho Moska

Eu nunca disse "eu te amo".
E você me olhava com aqueles olhos arregalados,
com aquela fome de não sei o quê.
"Eu não vou te seguir", você dizia,
e eu nunca soube o que isso queria dizer.
Talvez você soubesse que o caminho ia dar em nada,
em rua sem saída sem placa de aviso sem mão que nos ampare.
É, acho que era isso: você sempre soube.
E eu?
Eu fui dar com a cara na porta,
na porta da sua casa,
enquanto você me esperava
com o rosto desfeito e com as mãos em brasa
por já pressentir o fim de tudo.
Fingi que não acontecia nada,
que a gente era gente que não se prestava a esse tipo de coisa,
mas o que eu não entendi logo de cara
era que você sabia de tudo.
Antes mesmo do início, chego a suspeitar.
Aí, naquela hora morta, naquele tédio que era quase morte,
naquela tarde que se demorava a morrer pra noite,
eu ouvi você pela última vez:
"Você nunca disse 'eu te amo'".
(Mudo.)
(Mudo.)
(Mudo.)
Num segundo eu pensei que fosse brincadeira,
piada sem graça que a gente ri de nervoso,
pra não dizer besteira.
Então não é que eu perdi a cabeça, que eu gritei contigo,
pedi pra parar de conversa fiada,
que eu não 'tava afim de "me servir aos seus caprichos"?
"Cadê meu senso de ridículo?", logo depois eu pensei.
Já era tarde.
Você, calada, me acenou e, ainda sem dizer palavra,
subiu nosso último lance de escadas.
Eu culpei você, é claro, menina que não sabe o que quer,
que se deixa levar por qualquer notícia de tv,
por qualquer romance barato que se compra no supermercado.
Eu culpei você, agora no escuro, na noite insone,
nos olhos pregados no teto.
Foi então que eu me dei conta
e, na matemática inequívoca das lembranças,
eu fiz as contas de quantas vezes eu te ouvi dizer "eu te amo":
você, menina,
não, menina não,
mulher: mulher que sabe o que quer, que antevê o futuro,
que sempre soube de tudo.
Tarde.
"Eu não vou te seguir", você dizia,
e hoje eu sei por quê.
Tudo isso porque eu nunca disse "eu te amo".
Nem pra você nem pra ninguém.


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domingo, 23 de junho de 2013

Esperançar

Alguém disse de lá:
"Até quando?"
e o eco veio me lembrando
que a vida passa a milhão
pela avenida dos olhos:
na retina fica o que a gente foi amando
e o tanto que deixou de amar.
O que doeu, virou pranto,
hoje é cócega, quase carícia, no lembrar.
Bobo da gente que se roeu de noite
bobo da gente que perdeu o sono (foi encontrar de cansaço)
por tamanha besteira
que nunca, nunca foi mais do que laço
a prender as ideias no ar
suspenso do quarto abafado
era só palavra-palavra-palavra
martelo no aço
barulho esparso
medida desmesurada
pelo inconsciente metido à besta
louco por nos desnortear.
Desnorteio que acompanha, aponta pro lado
que dá na veneta:
Eu não quero nem saber de olhar pro céu
já me perdi procurando o último planeta
a encerrar a desesperança do que virá.
Virá, nascida prematura, pequena estrela
de longe, pra onde a Terra acaba
lá onde não resta mais nada
além de esperar,
Esperançar.

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sábado, 16 de março de 2013

Via Crucis

Eu fiz seu gosto:
um sorriso estampado no rosto
enquanto assistia à via crucis -
"Olha lá, é Jesus!" -
e no seu peito, a cruz:
seu nome era só o que eu via.

Eu desbastava as contas do vigário
ouvia a música, atento aos seus gestos
as mãos suavam no escapulário
alteando a voz a cada protesto -
"Presta atenção no que o padre vai dizer" -
e eu só tinha olhos pro seu nome.

Eu murmurava uma reza desconhecida
por você ensinada, toda agradecida
cheia de orgulho de menina crescida
a baixar os olhos ante a imagem -
"É tão bonita que parece miragem..." -
eu aquiescia e dizia mais uma vez seu nome.

Eu esperava o fim da procissão
aflito por saber da despedida
rendidos braços à oração
da felicidade compartida -
"Vá lá pedir sua bênção" -
e seu nome a redimir os meus pecados.

Eu quis seu gosto:
seu beijo marcando meu rosto
após a infinita via crucis -
"Lá se foi Jesus..." -
e nos seus lábios, fez-se jus:
repeti neles seu nome.


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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Um pouco. Pó. E só.

Por que é que a gente continua assim?
Não seria mais fácil um abraço
Uma palavra doce
Um risco, um traço
De amizade antiga, que fosse?
Mas não esse ignorar triste
Esse olhar que me socorre e me foge
Esse orgulho que, por que diabos, insiste
Em nos cumprimentar de longe
Enquanto, eu sei, a gente sabe,
O que queria era estar ao lado.
E aquela lágrima que escorreu
Eu não pude amparar. Eu queria.
Como eu queria!
Você pode até achar que não
Que toda essa nossa confusão
Armou-se por conta, não nos culpemos mais,
Do cosmos, das partículas indizíveis e invisíveis
Do universo, estrangeiro a qualquer entendimento,
Que desencontrou o meu querer
Do seu, o nosso querer.
Nosso.
Não, eu não vou reclamar de novo
Não vou chamar de tolo
Aquele poema que lhe dediquei de tímido:
Sim, só um carinho,
Um pouquinho, e pó.
Verdade, restou o pó
E o pouco
E o nó
Na garganta.
Pra facilitar as coisas,
É melhor que fique assim:
A gente continua indo
Indo e rindo
Como se tivesse junto,
Como se não fosse mudo
O grito que a gente grita todo dia
Toda aquela alegria
Que podia ter sido
Não fosse o passado perdido
E o futuro,
Um ruído.

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sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

ObsoLetra

 . .

Os olhos postados nas mãos
quedavam absortos:
as linhas curvas

os meios-tons
as marcas provocadas pelas intempéries:
tudo se misturava 

e se confundia
e se amalgamava
e se difundia
e se desesperava
no concurso das coisas

na decrepitude do minuto
do milésimo de segundo
ultrapassado pela velocidade
voracidade
da Vida-Instante impiedosa, impaciente:
Ansiolítica.


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