quarta-feira, 13 de abril de 2011

Convicções

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"Evidente que sim", foi a resposta. Era difícil crer que houvesse qualquer resquício de sentimento no que outrora fora, dito pelas benditas bocas e línguas, um grande e definitivo amor. Findo este, não por completo, dado o tom peremptório das palavras iniciais acima, o que não se sabe quando nem como aconteceu, pairou a dúvida, a incerteza, alinhavada pela segunda vogal de nosso idioma, aquela que, procedida por um sinal interrogativo, tem o poder de esmiuçar os porquês dos mais profundos questionamentos: "E?". O fim não seria algo trágico, talvez desesperador, uma busca de explicações para o inevitável, uma miríade de controvérsias impenetráveis à razão? De tudo, o que restou? Se não era amor, ora se não, impossível que não, o que seria, como poder-se-ia à flor da pele, do toque, do beijo, descrever, ou melhor, denominar a confusão de coisas que passam pela cabeça e que atordoam, rebatem, ressonam, duvidam até não se saberem mais cônscias de si nem de outrem? Disto, apenas um "E?" insolente, fático, conveniente, digamos, a encerrar o assunto. E ponto. Não se fala mais nisso.
Só a experiência ensina, dizem, mas o que realmente se aprende é insensível, invisível e prestará suas contas a um determinado tempo, imprevisível, aliás. Terão aprendido algo? Sim, pois se de tudo há uma lição, esta figura de retórica chamada amor não deixaria de trazer certo conhecimento. O quê, de fato, a algum momento da vida saber-se-á. Mas uma coisa é certa: enquanto houver a lembrança do vivido, lívido que seja, este amor, esta vida, aquela morte, também ela, e tudo o mais que se imagina pertencer à experiência humana perdurará no agora, ou seja, no sempre. E mesmo que insistam, destrinchem, questionem: "Onde é que tem amor nisso, companheiro?", afirmará, segundo suas vacilantes convicções, incontinenti: "No Agora, companheiro. Evidente que sim."

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terça-feira, 12 de abril de 2011

O último dia

Certos dias em que os odores incomodam
Os sons oprimem
O sal é ralo
O leve toque perfura os tecidos
Transpassa e inflige dor
E ver é a única razão
Pela qual se vale o trabalho
De viver.

Alguns dias em que as penas culminam
Os pêsames são adiados
Para um outro qualquer
E as palavras são simulacros
Indisfarçáveis simulacros
Pregando peças em transeuntes desavisados.

Conheces o medo
Conheces a dor
Já viveste a alegria
(Ao menos sonhaste com ela)
Compraste roupas, sapatos
Artigos de necessidade
Acessórios da modernidade
E continua a não compreender os homens
Continua a não compreender a si.

Há dias em que a poesia
É ver.
Há dias em que ver
É o último sopro
Produzido pelos pulmões cansados
Do árduo trabalho
De viver.

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Reminiscência

Inquieto
Procurava teu som em cada gesto
Esquecia teu cheiro na ponta dos dedos
Até perder-se no último expresso
Das lembranças que se findam na noite
Infinitas, as lembranças...
Eu em ti a trançar-te os cabelos
E por minhas mãos em que ora a vejo
Fazer recender o instante
Último e primeiro
Para além do caos de teu mundo

Incompleto
Perscrutava teus olhos no espelho
E nada me sabia no que via
Restava apenas o traço em vermelho
Deixado pelo batom de teus lábios
E teus lábios a fecharem-se
Teu corpo a fundir-se com o ar
Para que não te fosses possível o olhar
Para que se confundissem as estações
Invernos e verões
Indistiguíveis na órbita de teu planeta

Incerto
Errei pelas ruas de tua cidade
Encerrei nas celas do subsolo
Os amotinados que inadvertidos se fizeram verdade
E larguei-me a contemplar-te longe
Como alguém que longe
Divisa os montes de uma terra inexplorada
Tal o tempo em que a neve cerra geada
E plantei-me, e finquei chão
Onde me pusera a sentir-me
Ainda que senhor de mim,
Habitante de teu legado.

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