quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Azulejo

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Eram meus olhos nos seus: eles, seus olhos, calmos e claros, azuis e lejos, os meus inquietos, temerosos. E, fitando-nos, falamos, maravilhados por nossas presenças naquele quarto, naquele instante, quase como se quiséssemos estreitar no peito algum desejo insano que, por ventura, nos permitisse uma sobrevida até a próxima semana, quem sabe, ou mês, que quedaria eterno nas lembranças fugazes de ontem, anteontem, de um ano atrás... como se escutássemos uma música lenta, baixando sobre nossas cabeças e ouvidos ávidos por torpores desconhecidos até então e, imponderadamente, fosse-nos permitido avançar pela pista de dança que luzia apenas para nós dois... como se sonhássemos, eu, em vigília, com seus olhos azuis, lejos, você com suas façanhas, seus projetos concretos, abstraída pelo futuro insondável, e nesse sonho entrelaçássemos as mãos, inocentes, distantes de quaisquer vertigens do corpo. Naquele mesmo instante fugidio, como que acordando de um sonho em vigília, percebi que pertenciam somente a mim as imagens daquele quarto, as esperanças daquela noite. E como lutasse e não conseguisse detê-la por mais um instante, desses infinitos, vi esfumar-se entre meus braços, no abraço, seus olhos azuis: antes, agora e cada vez mais lejos.

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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Incompreender-se



Façamos de conta que, da simples ideia de ser,
subentenda-se a totalidade das coisas
que não podemos compreender.
Nessa falsa compreensão de tudo,
na vã tentativa de ocultarem-se as disparidades,
discrasias e imperfeições próprias e alheias,
anunciemos aos ventos, norte e sul,
o que buscamos e falhamos representar
com débeis palavras e escusados gestos.

Esforço néscio seria recompor-se,
desculpar-se, alterar-se a fim de transformar-se num certo um
que não se pode ser jamais,
sendo ele outro que não a si próprio.
E de mudar, de tornar-se algo que não a si mesmo,
sentir o medo, a raiva, a tristeza, a solidão
de não achar-se,
de, cada vez mais,
incompreender-se.

Ou, não saberemos nunca se é possível,
o "incompreender-se",
seja lá o que isso queira dizer realmente,
incompreender o mundo, a vida,
a morte, talvez esta mais facilmente,
faça emergir, enfim - jeito estranho de se pensar -,
puro e simples,
alinhavado pela totalidade das coisas,
o mito da compreensão, exato, inequívoco,
tal qual um deus que vemos e não ousamos tocar.

Ah, e quando isso acontecer,
façamos de conta de que nada sabíamos,
de que nos maravilhamos com o novo,
de que nos espantamos com o dúbio
e que as dúvidas, oh! quantas dúvidas...
estas nunca serão sanadas
mesmo apresentadas todas as respostas.
 
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sábado, 25 de agosto de 2012

Sujeito Indefinido em Primeira Pessoa

Se a névoa se esfuma,
que, outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
despetalar a lua!!
Federico García Lorca

Inexiste, em algum ponto do globo.
É todo ausência, todo vazio.
É oposto, posto que não tem lado.
Finge-se de morto, morte que assoma da janela.
Está, para o tempo, parado.
Móvel torpe do sistema solar.
Procura com as mãos.
Não vê.
Não sente. Sonha.

Desespera, vagamente. Vagamundo.
"Bom dia". Toda polidez do mundo.
Atado ao tratado das boas maneiras, sorri.
É, no magno palácio, palhaço.
Que abrace, que beije, não se contenta.
Que ame, que deseje, não experimenta.
Escreve, escreve, escreve.
Catárticos caóticos
casos caçados.
À luz da divina providência, despede.

Desdiz, desditoso.
Fala: mais fala, pouco escuta. Cicuta.
A víscera que substitui a vírgula.
A raiva que concentra a rima.
Que rima? Não há.
É, na magna carta, a cacofonia.
Vira caco de vidro. Despedaçado.
"Se minhas mãos pudessem despetalar..."
Mas não, não há!
Que fazer, então?

Descobrir, desdobrar, desnudar?
Insistir, instar, insensível ao padecimento?
Não, não cabe na palma, sobeja alma.
Faz o quê, por fim, se inexiste?
 

Desiste.

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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Abjuração

Nossas vozes se calaram repentinamente. 
Juntos, perdemos a fala, deixamos de lado o que, achávamos, era prescindível. 
Não era. 
Talvez fosse o que tínhamos de melhor.
E foi. 

Foi e não quer se repetir. 
Aprendemos a ser fortes. 
Isso, sabíamos, nos seria útil. 
Mas ter razão de nada nos serviria. 
Ter razão seria demasiado cruel. 
Para quem quer que seja, para quem quer que sirva de migalha. 
Abandonados, pediremos trocados nos sinais, 
faremos malabares com o que sobrou do sorriso, 
das lágrimas e dos futuros mais-que-perfeitos. 
Nos equilibraremos firmes sobre o tênue fio que nos separa do abismo, 
de olhos postos no indecifrável, 
ainda que a vertigem nos seduza.

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segunda-feira, 23 de julho de 2012

Sinais?!

E fim.
Exclamação?
Uma interrogação, repara bem!
Nada disso: nem um nem outro.
Era ponto final e não continuaria mais e acabaria ali e se reduziria a pó e se desmancharia feito desenho de criança na areia e seria matéria pro vento e seria dejeto abjeto objeto indireto ou direto e indecifrável sujeito na corrente das coisas que não tem mais nome valor ou porquê.
(...)
Mas o que é, meu caro, senão a vida um emparelhar de vírgulas, conectivos, conjuntivos esperando por algum sobressalto exclamativo interrogativo contumaz.
"Devias atentar para os sinais. Eles tendem a não se repetir."
E quantas e tantas vezes eu me vi a atrelar gente ao ponto,
à ortografia correta dos vezos e versos alexandrinos perfeitos, sem dúvida...
Reticentemente, não estaria eu sendo mordaz...
"Atenta para os sinais, atenta para os sinais."
Veja, ainda não acabou meu estoque de descalabros, candelabros
acesos.
Combinemos o seguinte: enquanto houver quem ouça, façamos troça.
Enquanto houver louça, engulamos, palavra por palavra, a farsa.

-Emparelho vírgulas de que me vale a vida senão por pôr vírgula onde me der na veneta esquecer a gramática de nada me adianta senão para para o minuto em que chegaremos logo. 

E começo.

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segunda-feira, 28 de maio de 2012

[auto]Análise

*Este post é algo diferente do que tenho feito por aqui. Tão mais natural que, vez em quando, as coisas saiam do comum.

As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou...
Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa - O Guardador de Rebanhos, XV


Especificamente, não há nada que se possa fazer no momento. As indas e vindas são naturais, são perfeitamente compreensíveis. Falamos das vicissitudes humanas e, contra essas, a filosofia oriental tem-nos banhado de conselhos e técnicas deveras eficazes, um tanto quanto árduas, que juramos de pé junto, e o ocidente se enche de superstições supérfluas, acatar com boa-fé. Certamente, sabemos pouco sobre nós mesmos. Em se tratando de sentimentos, aprendemos desde à tenra infância que o que nos é caro não sai barato, ou seja, sem desapontamentos, sem ofensas, sem brigas: permaneça próximo. Do contrário, não sei mais quem é você, creio não conhecê-lo mais, como você mudou! Decidimos quem são os que ficam, os que entram, quem sai ou quem nem devia ter entrado e desdizemos as palavras sinceras de ontem, as que, lindamente, escorreram pelos olhos em lágrimas de extrema comoção. "O que eu disse ontem não conta!" e assim nos enclausuramos uma vez mais na intrincada bolha das relações humanas. Esquecemos da matéria de que somos feitos, essa inconstante e disforme matéria que se molda a cada novo ato, a cada nova deliberada ou impensada atitude sobre nós dirigida. Nasceram mágoas e névoas passaram a fazer parte do seu caráter, meu caro! E a confiança é cristal que, partido, nunca mais reconstituir-se-á. Quão frágeis somos nós,não?! Soubéssemos da metade... Quanta palavra amarga tem se guardado, quanto gesto brusco tem se segurado não se sabe por que vias! E nós os primeiros a condenar um arroubo, uma reação instintiva que por instantes fugiu do controle. Respondemos às imprecações com facilidade (e com que prazer!), mas o elogio é tímido, envergonhado, ensimesmado. A palavra rude toma corpo, adquire dimensões gigantescas. Por sua vez, a afetuosa é estranha, carece de substância, de verdade. Predispomo-nos a receber a ofensa, enquanto o agrado sempre soa à bajulação, à caridade interessada. De fato, sabemos pouco, quase nada, de nós mesmos - menos ainda do que, ou de quem, nos rodeia.

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sábado, 12 de maio de 2012

Bendita Seja Tua Palavra


"Lembra-te bem, amigo, de que um gesto repetido à exaustão pode tornar-se natural; um bem feito, ainda que contrariado, ainda que careça de substância, pode vir a tornar-se um hábito; mas uma mentira, e já deves ter ouvido isto antes, mesmo que contada mil vezes nunca se tornará verdade. E lembra-te também: uma palavra, seja ela de conforto, de troça ou simplesmente proferida contra o silêncio implacável será sempre tua: tua filha, tua imagem, tua semente. Portanto, não faça com que se recordem de ti como aquele que se espalhou por aí sem render à terra um fruto que fosse, sem dizer, num nascer em flor, a um jardim sequer: 'Faça-se belo'."
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quarta-feira, 9 de maio de 2012

Mundo dos Negócios III [Conversa ao pé da letra]

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- E quem são vocês?, notava-se o escárnio na indagação.
Estufando o peito, inflando as narinas, respondemos, com convicção:
- Somos a nova burguesia, a burguesia em ascensão!
- Comprada em quantas parcelas, "campeão"?
- Em 48 vezes, senhor, sem entrada, no cartão.
... 

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Mundo dos Negócios II [Cartilha Profissional]

Quais os seus objetivos nesta empresa, meu jovem? "Firmar-me como parte integrante do corpo de funcionários e desenvolver-me como profissional, fomentando, dessa maneira, o crescimento da supracitada instituição." Muito bom, muito bom... "Aspiro à presidência, também, num futuro não distante." Ah... Aguarde na sala ao lado que minha secretária vai lhe informar os passos seguintes. Próximo!
A carreira de um profissional deve pautar-se pela disciplina, obediência e pela filosofia do "olhe, mas não toque". Há aqui um vídeo de motivação pessoal ensinando as técnicas de ação no mercado financeiro, "a hora de dizer não ao seu chefe" e os conceitos de empregabilidade. A barba, por favor, faça a barba! A imagem da empresa está estampada na sua cara (que será que veem, então, nesse sorriso forçado, nas olheiras do cansaço e nas mãos que pintam as façanhas do eletrodoméstico dos sonhos de qualquer dona de casa?). Lembre-se que o cliente tem sempre razão, vem em primeiro lugar, deve ter todas as suas expectativas atendidas etc.
Quais as suas prioridades nesta empresa, filho? "Crescimento e aprendizado, senhor." Esse menino tem futuro, quem sabe a sub gerência do almoxarifado de nossa filial em... qual é mesmo o nome da cidade em que inauguraremos nossa enésima loja? Precisamos urgente de trabalhadores, de preferência dos que não pensem. Faça o seguinte: deixe comigo seu currículo e eu lhe retorno o mais rápido possível. Faça: não cogite, não especule, não descanse, converse apenas o necessário, não reclame... O mundo, dizem, é dos espertos, não dos que falam demais. Saiba seu lugar, espere sua vez.
Em que pese a mediocridade, a falta de criatividade, a desigualdade imanente das classes e a alienação, não precisamos de novidade. Você quer ser presidente da empresa? Ah... Deixe seus contatos que lhe daremos uma resposta dentro em breve. Próximo!

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segunda-feira, 23 de abril de 2012

Aí ô "Poeta", diz alguma coisa!

Aí ô "Poeta", diz alguma coisa inteligente, original, um pensamento profundo pra acalmar os impacientes, pra aclarar as dúvidas.
Não é possível que você não tenha uma tirada sagaz pra arrematar o problema,
Pra desfazer a confusão da vida.
Faz favor, me ajuda a encontrar o caminho ou, pelo menos,
Me dá um norte: um sinal de fumaça já é suficiente.
Você mesmo disse que não é preciso pressa,
Que adiantar-se aos fatos é sofrer em dobro.
Mas então o que é que eu faço?
Se quando preciso, o que você me confia é uma piada suja,
Um sopro fático sem imaginação.
Se é de você que tanto espero a contundência da palavra,
Por que é que insiste em dizer sempre o mesmo?
Onde foi parar aquilo tudo que estava no livro,
Na prateleira indefectível do fim do corredor dos sonhos?
Talvez que a vida não seja o que você pensa,
Se é que pensa nela, não é, "Poeta"?
Talvez que a verdade não exista, por fim.
Essa verdade que tanto se procura, tanto se perde,
Talvez que seja só uma ilusão barata
Comprada, veja só, a dezenove e noventa na estante dos "Mais Vendidos da Semana".
E você, "Poeta", vai viver de quê?
Você ainda vive, não?!
Vamos lá, eu sei que ainda não desistiu.
Um pouco de água pra refrescar as ideias,
Um pouco de ar pra ventilar os pulmões,
Um pouco mais de si e pros outros, ora bolas!
Que medo é esse de ser o que se é, de dizer o que se quer?!
Aperte bem o cinto, amarre firme o cadarço,
Tem chão, tem muito chão.
Triste é ver você assim, com a cara afundada entre as mãos,
Os cabelos despenteados e os olhos fundos da insônia.
Já não põe mais a culpa no café,
No demasiado cansaço da inércia.
Aí ô "Poeta", já pensou em alguma coisa?
Sei que você não gosta de ser chamado assim,
Mas algo tem que ser feito pra demovê-lo daí e,
Se não for pelo incentivo forçado e contrariado dos que não se importam,
Será pelo sarcasmo, pela ironia, pela falta de tato de quem lhe bem quer
E mesmo sem saber de que maneira, quer vê-lo de volta.
Pense bem.
Ou melhor, não pense, não pense, não pense - três vezes dito, aproveite e bata na madeira.
Escreva uma frase sem cabimento, anote seu nome num papel,
Cole um recado infundado na porta da geladeira.
Não se esqueça do telefonema desprovido de motivos que você deve a ela.
Quem sabe ela volte.
Ou não.
O que te peço, caro amigo, é que não desista.
Não há mal com o qual não nos acostumemos vivendo em paz.
Em paz, dileto amigo, em paz.
"Poeta", você disse alguma coisa?!

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quinta-feira, 15 de março de 2012

Até breve, Adeus!


Não é questão de beleza
De superfícies lisas, tesas
Nem daquilo que se vê a olho nu
Não é questão de destreza
De frases lindas, frases feitas
Da pele branca, a folha em branco, a tinta azul
Não é tua boca nem tua língua
Não é à toa nem à míngua
Nem teus cabelos nem teus pelos
Que se acham entre os dedos
E se trançam, dançam, fazem jus aos elogios da pequena que te vê
Não são pupilas, traços em verde-claro, verde-escuro
Dia de sol, dia turvo
Que correm por sobre carros antigos
E buzinam e seguem e chamam teu nome
Não são os velhos amigos que se encontram
Tanto em comum, um e outro, um mais um
(Por que é que, ainda assim, você some?)
Não é que já tá tarde, tarde invade
Tarde arde em paradas de ônibus
Em olhares anônimos, sonhos, sinônimos
Que madrugada alta se levantam com medo na retina
Que será então, que será portanto?
Não será pranto nem quebranto
Será preto no branco, branco e preto, filme nonsense
De destinos que se tocarão
Quem sabe quando, quem sabe como
Talvez pelo seu, meu, nosso, hoje, "não"
Até lá, alto lá, de lá pra cá
Um abraço, um "bom te ver"
Um beijo baço sem porque
Mas sem adeus, pelo amor de Deus!
Que aí não tem pra onde ir
E tem tempo, tem vida, tem um pouco mais de mim, um pouco mais de ti
Mas, se fores, responda ao meu pedido:
Que seja forte, seja vivo
Um até breve, um olhar partido
Mas nada de adeus, faça-me o favor
Pelo amor de Deus!


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