terça-feira, 24 de agosto de 2010

Diário

Demasiado cedo
O corpo reluta
O frio fustiga
O sono, renitente
Caminha ao lado
Caminha?
As mãos tremem
O espelho reverbera
A luz fosca
De um rosto inane
De fato
Tudo vai mal
Vai?
(Se fizesse sentido
Se tivesse tempo
Se soubesse da vida...)
Reconhece a sombra
Debaixo dos pés
Conforma-se
Ir assim
Pisando na sombra
Para não tropeçar
Ir?
Faz as pazes
Torna a brigar
Criança eterna que é
Não sabe ouvir
Não!
O dia é fogo-fátuo
Carente de luzir
Correndo desabaladamente
Rua acima
Das tristezas noturnas
Correndo?
Cogita
As ações encabuladas
Tímidas
À meia-voz anunciadas
Pelos alto-falantes
Encabulados
Da estação detrás do morro
(Sempre haverá quem ouça
As preces benditas)

Agitam-se bandeiras

Enquanto segue o cortejo
De pedras e desejos
No coração dos homens.

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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Ratos [e livros]

Aluguei um quarto barato
Num bairro obscuro da cidade,
Onde divido meus livros com os ratos.
São ótimos inquilinos.
Contentam-se com qualquer migalha,
Raramente abrem a boca pra reclamar.
Trazem de vez em quando um amigo,
Nada que um pedaço a mais de pão-de-ontem não dê jeito.
Enquanto escrevo,eles roem.
A convivência é pacífica,
Quase não há brigas.

Na estante do cômodo ao qual chamo de sala

(Na verdade,é uma extensão do banheiro),
Avolumam-se livros e desesperanças,
Cada qual inacabado a seu modo:
Os livros,abandono-os logo no início:
A modorra pela vida
Predispõe-se à fome.
As desesperanças,entreguei-as ao ego,
Que as trata de rechaçar veementemente:
Ele ainda acredita.

Abro minhas últimas anotações:

Exilei-me à procura de paz,
Entretanto,neste quarto barato num bairro obscuro da cidade,
Só encontrei ratos.
E livros.
Mas destes e daqueles,principalmente daqueles,
Não posso reclamar:
São ótimos inquilinos.
Fazem-me companhia à beira da janela nos finais de semana.
Conferimos a vida alheia pelas frestas que escapam dos andares inferiores.
Conversamos sobre mulheres,futebol,amenidades:
"Será que chove?",pergunto.
"O tempo anda seco,uma boa chuva não seria de mau grado",respondem.
Revelaram-se sábios.
Como eu,fogem das frases feitas.
Pena refugiarem-se nos lugares-comuns.

Quanto aos livros,mantém-se calados.

Como eu,querem tanto falar...
[Quem os ouviria? Quem me ouviria?]
Pena não serem compreendidos.

Sentado numa velha poltrona

No meu quarto barato
No bairro mais obscuro da cidade,
Eu escrevo.
A chuva esperada resolveu cair,
Irrompendo pelos buracos do teto.
Sobre minha cabeça,
As gotas deslizam.
Uma vontade súbita de chorar.
Com os olhos marejados,
Já não sei se é chuva ou se são lágrimas
A escorrer pelo rosto.
Eu continuo a escrever.
Ao fundo,um ruído:
São os ratos,
A roer.

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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Sonetito

A saudade que em ti se despe,
Guarda mistérios do que nunca vi.
Calhou-me ser o que dela se veste,
Amante tolo de pedra rubi.

No exato instante em que tu distas,
As dores põem-se a gargalhar.
Dos amores são as egoístas,
Todo ouro para si querem guardar.

E, vendo-te bela, ao longe,
Nos verdes campos da memória,
É como sentir que o amor me foge.

Morando, reclusa, no castelo da estória,
És tu dama que o fogo não forje,
És tu e por si, tua glória.
.

Para que tantas, Vírgulas?!

Perguntaram-lhe, certa vez, a ele, que fique claro, não a outro, não a mim, o porquê de tamanho,digamos,sem ser esta, evidentemente, nossa opinião, "egocentrismo" e ele respondeu, extremamente enervado, com razão, qualquer cidadão o ficaria, não entender esta gigantesca infâmia, certamente ventilada por seus inúmeros, incontáveis, odiáveis inimigos, aqueles que, pejados de inveja, ignoram sua admirável missão, ainda hoje conhecida por poucos, privilegiados, estes, entendedores ou que, pelo menos, estão próximos de compreender sua real importância, de inculcar, profundamente, nas mentes dos usuários, desde os mais simples aos mais doutos, em suma, de todos, dos signos, letras e afins, a beleza da sintaxe, da colocação pronominal, das orações coordenadas e subordinadas, dos verbos no infinitivo, do quão temerários são os vícios, estes que, lembra ele, se usados com destras mãos, podem vir a serem engenhosas construções gramaticais, e destas, as “construções”, abstraindo-se as “gramaticais”, as quais conhecemos as proparoxítonas, sublimes, bem como as figuras de linguagem, as silepses, as elipses, os assíndetos, as metáforas, recordando, também, desta vez prescindindo das “figuras” e reutilizando a “linguagem”, suas funções, que, metalinguisticamente falando, pretende aprimorar através da palavra, tanto dita quanto escrita, cada uma há seu tempo, além de várias e várias outras preciosidades de nossa língua, reconhecidamente pouco valorizada, enfim, não obstante tudo isso, têm a petulância de lhe censurarem, em função, talvez, de seu demasiado rigor ou, mais, pelo seu excesso regras, sendo, por estas, inquirido, insistentemente: "Para que tantas, Vírgulas?!"