segunda-feira, 21 de março de 2011

Vertigem

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Antes da queda, respirou fundo pela última vez, apertando os olhos para sentir o ar a encher-lhe os pulmões. Queria que as sensações finais se delineassem nitidamente, bem como nítidas se apresentavam as poucas nuvens que passeavam por sobre sua cabeça. Trazia a uma das mãos uma maleta pequena onde estavam seus objetos de trabalho: canetas, blocos de nota, o jornal da manhã e a indizível ânsia de desligar-se de tudo - da existência, principalmente. Na outra mão, pendia um copo vazio onde, havia pouco, depositara uma dose de café misturado ao whisky barato abrigado no paletó. Sorvera num só gole a bebida e achou que, por bem, deveria não beber mais a fim de manter-se escrupulosamente sóbrio. Não queria que seu ato fosse diminuído pela suspeita de embriaguez, apesar de não se lembrar quando fora a última vez em que o tinham visto completamente sóbrio. Proferiu palavras sem nexo, por certo alguns versos de seu poeta predileto, e deleitou-se ao ouvir a própria voz a antecipar as manchetes dos periódicos do dia posterior: o prazer mórbido suplantava o terror do desconhecido. Sempre quisera saber o que se passava na mente do suicida nos momentos que precedem a morte e espantara-se ao se deparar com um completo nada, um nada absurdo que o incitava a jogar-se, a dar cabo do reles amontoado de matéria que se julgava, a apagar para sempre a vaga esperança dos obscuros dias futuros. Atirou a maleta e o copo simultaneamente e os acompanhou com os olhos até chocarem-se contra o solo. Imaginava não mais sentir medo, frio, fome, angústia. Qualquer sentimento ou necessidade humana constituía outra coisa, outra coisa que não lhe fora dado anteriormente o privilégio de conhecer e a qual não podia considerar como sua. Cerrou mais uma vez os olhos (pela última vez). Desejou ser reconhecido mais uma vez (Olhem, aquele homem vai se atirar!). Persignou-se (pela última vez). Consultou o relógio (pela última vez). Recuou um passo. Pensou: "É agora!" E não foi. Um súbito pânico lhe acometeu, paralisou-lhe as pernas, cortou-lhe o ar. Deu as costas ao abismo e rumou para o trabalho maldizendo-se, maldizendo a vida e jurou por tudo que lhe era mais sagrado que havia feito aquilo pela última vez. Mais uma vez.

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quinta-feira, 17 de março de 2011

Mundo Moderno

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Homens que caminham indiferentes
Fumam seus cigarros e recitam a bula
Do último fármaco produzido
[Deu no jornal que não houve maior revolução medicinal, antropológica, quiçá metafísica em todos os tempos que a ensejada pelo remédio que promete curar todas as dores da vida]
Com ares de importância
E nem desconfiam que sejam a única verdade
Naquilo que se convencionou chamar
O Mundo Moderno.

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quarta-feira, 16 de março de 2011

Humano [Ad Eternum]

Eu estava lá quando tudo aconteceu
Vi o Verbo fazer-se Carne
Vi a Carne tornar-se eterna
Vi a Eternidade fulgir no terceiro dia
Para mitigar as culpas
Para mistificar o pecado.

Eu estava lá e fui um dos que O seguiram
Um dos que ouviram Seus ditames
Um dos que engendraram, com Ele, um novo mundo
E erigiram sonhos de Nova Era.

Eu estava lá e fui um dos que O apedrejaram
Um dos que vindicaram Sua morte em praça pública
Um dos que O traíram por 30 dinheiros
Um dos que O negaram por três vezes
E O atiraram à ignomínia.

Eu estava lá e fui fraco
Fraco como não podia ser:
Acorrentaram-me e não resisti
Aquiesci com os olhos e com o corpo
E com a falsa resignação que me foi ensinada
Procurei-me nos meus discursos e nos meus valores
E não encontrei no que disse nem a mim
Nem a explicação pras tais leis que me regiam.

Eu estava lá e cometi a maior das perfídias:
Desacreditei-me
E não me perdoei nunca
Por ter sido tão tolo
Por ter sido tão incansavelmente fraco
A ponto de abandonar-me
E, sobretudo
Por ter sido demasiado
Humano.
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quarta-feira, 2 de março de 2011

Hoje

Hoje
Temo a incompreensão
E para fazer-me claro
Reduzo a língua à boca.
Não ignoro o som que me trará
O vocábulo inexato
Despregado das paredes da memória
Mas também não o desejo.

Hoje
Não seguirei a métrica
Não procurarei a rima
Nos dicionários práticos da língua portuguesa
Os sinônimos pertinentes
Não me farão falta:
Subjugo-me ao antagonismo
Às antíteses
Aos paradoxos e à matéria
E desprendo deles
A ilusão de unicidade.

Hoje
Direi o que da língua
A boca me permitir
Diluindo em gotas
A panaceia amarga
Prescrita e assinada.

Hoje
E talvez não o faça
Expurgarei os quebrantos
E serei só
Sem eles, meu alimento.

Hoje
E apenas hoje
Desconstruir-me-ei
E farei dos escombros de mim
Minha poesia.

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