segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Todas as Vozes


O que não deve ser dito em voz alta,
o que não deve ser dito.
As palavras impronunciáveis,
as preces incorruptíveis,
os lamentos ininteligíveis,
as verdades pela metade.
Que sejam esmagadas, que sejam destituídas de todo cerne, de todo motivo que as avive.
Eu não falo de silêncios,
eu não clamo a simples ausência,
o vazio de sons de agora até o princípio.
Eu não falo de silêncios.
Eu falo do que não pode ser ouvido,
do que não pode ser dito.
O oco, o mouco, o imperceptível.
O que não está na sintaxe, na ortografia, nos objetos, nos sinônimos, nos oximoros, nas antíteses, na língua de nossos antepassados.
 

O que não pode ser dito não será dito.

Todas as vozes que, aflitas, se escondem por detrás dos dentes.
Todas as vozes presas, engolfadas pela saliva rançosa do desprezo.
Todas as vozes que, sonhadas, já não servem mais.
Todas as vozes abandonadas.
Todas as vozes que nos chamam à razão: inúteis.
Todas as vozes que se calam
enquanto não me calo, enquanto insisto, enquanto resisto.

Meus olhos não querem as palavras,
meus ouvidos não querem os sentidos:
é pelas mãos que procuro a calma.

O que não deve dizer nada, o que não tem nada a dizer.

A voz do que foi esquecido por ora cala:

são elas todas as vozes da Alma.

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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Hálito Noturno

Tuas roupas espalhadas pelo chão,
quase que um retrato em preto e branco,
enquanto pela janela sopra o gélido hálito noturno
por mim tão conhecido.
Nos teus cabelos em desalinho,
sob as sombras fátuas que desenham teu corpo,
eu passeio a ponta dos dedos,
o braile dos ignaros,
até que você diz, meio adormecida,
meio desperta: "Fica".
Beijo nos teus ombros desculpas pelo "não" que não direi,
uma carícia de despedida,
finitos instantes.
Em algum momento não muito distante, sei bem,
o abandono será a derradeira lembrança
do que um dia foi grito, arrepio e gozo.
Deixo tua casa, tua cama, a porta bate num baque seco atrás de mim,
e vagueio pela rua logo que a manhã irrompe.
Já deixei outros quartos, outros lençóis,
outras, nunca iguais a ti,
não por não querer ficar,
mas por desconhecer o que une a noite tão cheia de vozes e desejos intensos
ao dia sempre tão cheio de carícias frívolas e mornos diálogos desinteressados.
Talvez porque eu seja só carne,
carne entorpecida que carrega a sina de ser só
e desperte apenas a intervalos furtivos
ao sentir, da madrugada que chega, seu hálito noturno.
Aquele que não sabe das gramáticas um quê de nada
e acaba por colocar precoces pontos finais
em cada caminho anunciado.


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domingo, 31 de agosto de 2014

Catarse


A minha vida toda é uma citação.
O meu pensamento próprio é todo ele um painel de imagens desencontradas, de fragmentos que não se encaixam.
A minha explicação não se encontra no todo, não se encontra nas partes.
A minha explicação não se encontra nos meus atos, não se encontra no que digo, nem sequer se vislumbra nos meus entrementes:
- Não se encontra.
A minha vindicação não está nos meus acertos: ela absolve meus erros.
Eu-todo não sou e ainda assim, sou.
A minha vida-pouca é toda uma citação:
A minha vida-tola é toda ilusão.


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quarta-feira, 30 de julho de 2014

Espia!

Espia,
logo ela chega.
Espera,
que ela não tarda.
Não se preocupe,
ela vem.
Não dará telefonema,
não mandará notícias, telegrama, email
marcando data e hora.
Simplesmente dirá "bom dia", dia desses,
abrindo braços e sorrisos
para abraços e beijos de saudade.

Espia:
felicidade é notícia boa
que assoma na janela
sem avisar,
felicidade é coisa à toa,
cheiro de canela
no bolo de fubá.
Escuta: felicidade vem e voa,
é feito vela
prestes a se apagar.

Expia:
e se, por um instante, você percebesse que o mundo todo não é você?
E se, repentinamente, o mundo todo deixasse de ser você?

Expia!
Mesmo que arda, carda o cobertor
da vida inteira, expia!
Sabe Deus se vale a pena
escorrer a pena a dizer
que é bela a moça que acena
por detrás dos óculos,
no ecrã, no faz de conta da TV...

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terça-feira, 20 de maio de 2014

Das Voltas Do (Quase) Amor


Pesa.
E quanto peso!
Já não vale a reza,
o santo terço.
Quando é presa a peça,
quando aperta o peito,
coração disfarça,
mas não tem jeito:
cadê cor, cadê graça?
Já fim? Não aceito!
Seu quase mar, assim, deságua em nada.
Sou quase rio, pobre de mim, sem o seu leito.

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