domingo, 31 de julho de 2011

Bons dias

Direi bom dia aos bons,
Em caso de dúvida.
Não pretendo cometer injustiças
Nem tampouco ser dos que se veem cercados
Pela bolha intrincada das relações humanas.
Faço parte, não se questione jamais,
Da maioria, do chulo
E, se escolhi ser um de seus adidos,
Serei um de seus melhores,
Um de seus capitães.

Direi bom dia aos bons,
Às ordens da casa.
O abre-alas vindica a mais torpe idiossincrasia,
A do cabresto.
Será elevada à baluarte de nossa época,
Será cultuada feito a falaciosa abstração da divindade.
Esqueceremos as verdades superficiais
Para sermos profundamente supérfluos,
Pregados as cadeiras elétricas libertadoras,
Diante do telejornal da nação Sem Nome,
Sem Fundos, Sem Fala.

Direi bom dia aos urros,
A plena voz, aos arranques de pulmão
Acima dos portões de entrada
A fim de que se entreouça e veja minha [in]feliz saudação.
[A mais vil e rasteira suposição
Foi tomada ao pé da letra
E que será de nós?]

Faltam poucos minutos para o meio-dia
E já não mais poderei dar-lhes meus sinceros e despretensiosos
"Bons dias".
Em caso de dúvida,
Obedecendo às ordens da casa,
Empostando a voz para proferi-lo com clareza,
Anseio pelo momento em que nascerá o novo dia
E não serão necessários adjetivos a contemplá-lo
Vaga e amargamente,
Sendo desejo o simples
Abrir de olhos.

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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Casa

Voltou, e era como se nunca a houvesse deixado para trás. Resistia, estoicamente, feito um sonho de tempos idos, do menino perdido nalgum recôndito da memória, a casa caiada da infância, com suas janelas pequeninas, sua varanda esverdeada pela invasão da mata a verter em derredor, seu cheiro de terra boa, sua aura indissociável de paz. Desde que se lançara à ventura, buscava, sabe-se lá se conscientemente ou não, algo parecido com o que vivera e sentira ali, àquela época, e agora, já velho, já avô, já distante do moleque travesso de seu avô, consentia que a vida sua, a única que lhe fora permitida conhecer ao dobrar das páginas amarelas de anúncios, fora talhada na madeira desta casa, no assoalho deste chão.
Ainda jovem, imaginara um mundo vasto a ser desvendado, esmiuçado, explorado pelo fulgor de seus poucos anos: visitara, desta feita, as capitais da moda, da futilidade; contemplara os palácios de pedra e ouro; sentara-se à beira do último rio do globo; amara à sombra do primeiro outeiro da Terra, e quê? E quê? Do que vira e ouvira, sentira e prescindira, dissera e desdissera, resignara-se à impressão de que tudo não passava da repetição dos atos mecânicos do cotidiano, do óbvio. Admitira, com pesar, sua impotência diante da massa disforme que desfaz e corrompe os sonhos, os ideais, os escrúpulos - "Como isso, visto daqui, parece desusado, descabido, sem pé nem cabeça!". Os olhos cansados desejaram, então, a calma, o sossego, o fim - não tão já, mas ao menos o lugar em que se prepararia a cama, a comida, o banho quente para a tão almejada paz. Os olhos cansados, o corpo cansado, a mente esquecida, a boca seca, os ouvidos moucos, os gestos vacilantes, as palavras cada vez mais raras à língua, desejaram, então, a casa, Sua Casa.


...

"Vê, se podes!
É a casa caiada de teus pais.
É, se não percebeste até este instante,
teu lugar,
tua firma,
tua explicação.
Não podes encontrar o que buscas,
não sabes ainda o que buscas:
não entendes o conjuro das estrelas
que formam teu nome.
Aqui, onde fincaste pé,
onde premeditaste o regicídio vaticinado pelas emissoras de TV,
onde escreveste as cartas magnas da insurreição dos oprimidos,
onde tens pregado nas paredes os sistemas econômicos e sociais do futuro,
as inflexões dos verbos irredutíveis,
onde tens sido tanta coisa que não saberia definir-se,
deixaste de ver.
Tu te tornaste o que sempre repudiara
e já não podes enxergar
que a felicidade é feito um sonho da infância
em que se divisa a casa caiada de quando menino,
com seus olhos miúdos,
sua matiz dos campos,
seu olor desprendido do orvalho da noite
e seu hálito incomunicável
que é a própria paz."

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sábado, 16 de julho de 2011

Teogonia

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Há de haver paciência no desespero
Há de haver compreensão no inominável
Há de haver virtude na ignomínia
Há que ser todas as coisas
Sendo pó

E do pó erigir nosso obelisco
Nossa pedra angular
À forja das espadas
À guisa das esperas.

Há que se deslindar o último novelo
Puxando pela ponta do falseio
O resquício da palavra que buscamos
E não ousamos pronunciar.

Há que seguir, indivisível:
Sãos e naturais da estrada partida ao meio
Em que se bifurcam, para sempre
O paraíso e a calma
Da plenitude e ventura

E da ventura e plenitude
E do paraíso e da calma
Colher, ao menos
A derradeira planta originária da terra
Pretérita e ignota.

"Observe, filho!
Nas mãos se esconderam, pequenas
As linhas ilegíveis do cosmos:
Somos, agora, o mesmo
Ainda que sejas pai.
Somos, embora os mesmos
Eu e meu único filho."

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domingo, 10 de julho de 2011

A Perda

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Não, não foi exatamente o que me ocorreu. Mesmo que os sinais se dispusessem às alvas vistas, era diferente, era novo. Contrariava o pessimismo da última escrita, o Sacro Sacramento investido e deduzido à força pelas mãos da Santa Sé. Não era o espasmo premonitório dos Xamãs nem a nesga da porta entreaberta nem a pretensa sabedoria dos seguidores da fé. Deu-se pela distância, pela perda e pela ignorância nos desígnios do amor. 
Casualmente, compreendeu-se que havia no passado, agora longínquo, uma percepção pequena do fato, obnubilados, talvez, estivéssemos pela paixão pueril que nos acometeu. Éramos ainda fruto não colhido, ansiosos à espera das mãos que nos trariam à mesa, à vida, para que saciássemos as ávidas e mortais bocas. Mas não devamos a isso a negligência, a temeridade, a iniquidade do nosso ato. Saiba-se que, de minha parte, a culpa há tempos se abateu. É espantosa a forma com que os dias se sucedem e as faltas, farpas e falhas amplificam-se, mistificam-se, tornam-se insustentáveis. Passam pelas retinas, intermitentemente, as imagens insidiosas, paisagens da existência que não se permitiu nascer, abortada precocemente. Esta foi a melhor escolha? Restou, tardiamente, a ponderada visão do todo, sem que se chegasse a qualquer conclusão. Afinal, nunca saberemos em qual destino daria a outra vida. Quem sabe a próxima parada fosse o nada, tal qual esse nada que hoje nos engole e nos despoja.

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