quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Passamento

Bateram na porta. Pedia-se silêncio. Justo. Velavam aos cochichos, pois sim, não se quer incomodar os mortos. Não obstante, os automóveis e a rotina faziam-se presentes com seus impertinentes ruídos ao meio-dia. O pai do falecido, abatido, desconsolado, dirigiu-se até a entrada da casa para ver quem se tratava. Um familiar distante, um amigo do peito, aos prantos, uma ex-namorada, paixão pueril, um conhecido, incrédulo e estupefato ante aos caprichos da morte, são várias as possibilidades a se cogitar, não estivessem os espíritos ocupados em manterem-se circunspectos e inflexíveis, tal exigia a ocasião. Digamos que não havia muitos no local, mas, em todo caso, o passamento do jovem não se deu em brancas nem tampouco carregadas nuvens. É certo que não se encontravam totalmente alheios ao acontecido. Falamos das batidas na porta, explicite-se. Da morte, se dela o disséssemos, também não, embora, em alguns, a consternação demonstrada fosse mero teatro social. Mas voltemos ao que interessa e não nos percamos mais, que já nos distanciamos do que nos trouxe até aqui. Chegado à porta, o pai, enegrecido, encarquilhado e envelhecido muitos anos com a perda do primogênito, abriu-a lentamente. Deparou-se com um vendedor de enciclopédias. Diante da situação e das expectativas criadas, por nós, não pelos presentes, como, esperamos, depreende-se da narrativa, era natural que fosse enxotado a pontapés. Mas não. Era tão moço! Tão moço quanto o que, à meia-duzia de passos, jazia sobre a mesa da cozinha, engravatado e maquilado, penteado e engomado, porém inânime, qualidade destas incondizentes aos viventes de pouca idade. O pai, emocionado, pensou em convidá-lo a entrar. Talvez tivesse algo de seu filho, algum gosto parecido, uma mania, a juventude de hoje pensa, fala, age igual. Que maluquice! Chamar um desconhecido para um velório. Sob que desculpa? Devia, realmente, ter ficado louco. Despediu-se polidamente do rapaz prometendo, quem sabe outra hora, e voltou para onde estavam os outros. Já não se ouvia alma viva. Das mortas, não se pode dizer o mesmo.
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