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Antes da queda, respirou fundo pela última vez, apertando os olhos para sentir o ar a encher-lhe os pulmões. Queria que as sensações finais se delineassem nitidamente, bem como nítidas se apresentavam as poucas nuvens que passeavam por sobre sua cabeça. Trazia a uma das mãos uma maleta pequena onde estavam seus objetos de trabalho: canetas, blocos de nota, o jornal da manhã e a indizível ânsia de desligar-se de tudo - da existência, principalmente. Na outra mão, pendia um copo vazio onde, havia pouco, depositara uma dose de café misturado ao whisky barato abrigado no paletó. Sorvera num só gole a bebida e achou que, por bem, deveria não beber mais a fim de manter-se escrupulosamente sóbrio. Não queria que seu ato fosse diminuído pela suspeita de embriaguez, apesar de não se lembrar quando fora a última vez em que o tinham visto completamente sóbrio. Proferiu palavras sem nexo, por certo alguns versos de seu poeta predileto, e deleitou-se ao ouvir a própria voz a antecipar as manchetes dos periódicos do dia posterior: o prazer mórbido suplantava o terror do desconhecido. Sempre quisera saber o que se passava na mente do suicida nos momentos que precedem a morte e espantara-se ao se deparar com um completo nada, um nada absurdo que o incitava a jogar-se, a dar cabo do reles amontoado de matéria que se julgava, a apagar para sempre a vaga esperança dos obscuros dias futuros. Atirou a maleta e o copo simultaneamente e os acompanhou com os olhos até chocarem-se contra o solo. Imaginava não mais sentir medo, frio, fome, angústia. Qualquer sentimento ou necessidade humana constituía outra coisa, outra coisa que não lhe fora dado anteriormente o privilégio de conhecer e a qual não podia considerar como sua. Cerrou mais uma vez os olhos (pela última vez). Desejou ser reconhecido mais uma vez (Olhem, aquele homem vai se atirar!). Persignou-se (pela última vez). Consultou o relógio (pela última vez). Recuou um passo. Pensou: "É agora!" E não foi. Um súbito pânico lhe acometeu, paralisou-lhe as pernas, cortou-lhe o ar. Deu as costas ao abismo e rumou para o trabalho maldizendo-se, maldizendo a vida e jurou por tudo que lhe era mais sagrado que havia feito aquilo pela última vez. Mais uma vez.
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Antes da queda, respirou fundo pela última vez, apertando os olhos para sentir o ar a encher-lhe os pulmões. Queria que as sensações finais se delineassem nitidamente, bem como nítidas se apresentavam as poucas nuvens que passeavam por sobre sua cabeça. Trazia a uma das mãos uma maleta pequena onde estavam seus objetos de trabalho: canetas, blocos de nota, o jornal da manhã e a indizível ânsia de desligar-se de tudo - da existência, principalmente. Na outra mão, pendia um copo vazio onde, havia pouco, depositara uma dose de café misturado ao whisky barato abrigado no paletó. Sorvera num só gole a bebida e achou que, por bem, deveria não beber mais a fim de manter-se escrupulosamente sóbrio. Não queria que seu ato fosse diminuído pela suspeita de embriaguez, apesar de não se lembrar quando fora a última vez em que o tinham visto completamente sóbrio. Proferiu palavras sem nexo, por certo alguns versos de seu poeta predileto, e deleitou-se ao ouvir a própria voz a antecipar as manchetes dos periódicos do dia posterior: o prazer mórbido suplantava o terror do desconhecido. Sempre quisera saber o que se passava na mente do suicida nos momentos que precedem a morte e espantara-se ao se deparar com um completo nada, um nada absurdo que o incitava a jogar-se, a dar cabo do reles amontoado de matéria que se julgava, a apagar para sempre a vaga esperança dos obscuros dias futuros. Atirou a maleta e o copo simultaneamente e os acompanhou com os olhos até chocarem-se contra o solo. Imaginava não mais sentir medo, frio, fome, angústia. Qualquer sentimento ou necessidade humana constituía outra coisa, outra coisa que não lhe fora dado anteriormente o privilégio de conhecer e a qual não podia considerar como sua. Cerrou mais uma vez os olhos (pela última vez). Desejou ser reconhecido mais uma vez (Olhem, aquele homem vai se atirar!). Persignou-se (pela última vez). Consultou o relógio (pela última vez). Recuou um passo. Pensou: "É agora!" E não foi. Um súbito pânico lhe acometeu, paralisou-lhe as pernas, cortou-lhe o ar. Deu as costas ao abismo e rumou para o trabalho maldizendo-se, maldizendo a vida e jurou por tudo que lhe era mais sagrado que havia feito aquilo pela última vez. Mais uma vez.
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