quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Litania da Finada Esperança

Acabaste de perdê-la,
E agora?
Não era ela a última a morrer?
Sim, mas, de fato, não morreu.
Aliás,este consolo.
Sabes que ela voltará,
Como sabes!
Voltará sorrindo
E com este sorriso,
Persistirás:
Incorrerás novamente no erro,
Nas promessas, sabes bem,
És paciente do ambulatório central
De Almas do Desterro.
Tens boa memória,
Lembras das falácias
Que tu próprio te rogaras
Tal litania em procissão.
O que farás?
És agora homem,
Não gente, que disso estás longe,
Não tens a quem recorrer.
O que te circunda
É ínfimo perto do que dentro te revolta.
Mas não te preocupes,
Estás a caminho,
Chegarás em breve,
Amigo.
Ela te acompanha,
Fiques tranquilo.
À hora
Em que dobra a esquina
E parece que te vira as costas,
Não te espantes.
É só mais um de teus rompantes
Que a fez esconder-se.
Agora, amigo,
Descansa.
Não tarda o trem que esperas,
O das metáforas em que te imiscuis.
Isso tudo nele vai,
E volta,
É dele a matéria de que és feito,
É nos seus trilhos que te revelas.

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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Periódico

São fatos contados,
Favas às traças.
Consumados, saberemos adiante
Desinflados os egos
Apaziguados os ânimos
Surgidos os destroços
Reparados que seriam, se possíveis fossem.
Recolhidos os cascos
Reinará a limpeza:
Asseado, passado e engomado
Destreza dos homens
Séculos de experiência.
Apagado o incêndio
Varrerão as migalhas
Pra debaixo dos canos
Rede de intrinca
Perdurando anos afinco
A fim de que não se esqueça
Não se perca a cabeça!
Especialmente por reentrâncias
Revisitadas no leito de mocidade.
Passadas as vacas dadas
Sobrará a perder revista
Atualidades, gêneros alimentícios etc. etc. etc.
E festa, em festa
Estarão os pobres do socorro
Calçando, orgulhosos, alpercatas multicolores
Dançando roda com bondosos senhores
Engenho ardiloso
Destreza das mãos
Ressequidas do tempo.

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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Solitude

A solidão
Espreitou-me da porta
Agarrou-me na soleira
Quando eu tentava fugir

A solidão
Fingiu-se de morta
Nas cinzas de quarta-feira
Do carnaval a se despedir

Passou o cometa
A vida-instante
A estrela cadente
A última constelação
E o que foi que eu vi?

Ah solidão, velha companheira
Amiga das linhas tortas
Em que me inscrevi
Foste tão minha como nenh'outra
Minha, minha, mil vezes minha...

Partilhamos, desde sempre
A ausência
O silêncio
O segredo
O salão de festas abarrotado
E o copo vazio
Corpo sozinho
Teu retrato
Tela desfeita.

Ah solidão
Se soubesses que nada importa
Que tudo é besteira
Que se vê por aí!

Ah solidão
Diz-me, zombando, tanto mais que corta
A sua triste maneira
De me sorrir.

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