quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Ratos [e livros]

Aluguei um quarto barato
Num bairro obscuro da cidade,
Onde divido meus livros com os ratos.
São ótimos inquilinos.
Contentam-se com qualquer migalha,
Raramente abrem a boca pra reclamar.
Trazem de vez em quando um amigo,
Nada que um pedaço a mais de pão-de-ontem não dê jeito.
Enquanto escrevo,eles roem.
A convivência é pacífica,
Quase não há brigas.

Na estante do cômodo ao qual chamo de sala

(Na verdade,é uma extensão do banheiro),
Avolumam-se livros e desesperanças,
Cada qual inacabado a seu modo:
Os livros,abandono-os logo no início:
A modorra pela vida
Predispõe-se à fome.
As desesperanças,entreguei-as ao ego,
Que as trata de rechaçar veementemente:
Ele ainda acredita.

Abro minhas últimas anotações:

Exilei-me à procura de paz,
Entretanto,neste quarto barato num bairro obscuro da cidade,
Só encontrei ratos.
E livros.
Mas destes e daqueles,principalmente daqueles,
Não posso reclamar:
São ótimos inquilinos.
Fazem-me companhia à beira da janela nos finais de semana.
Conferimos a vida alheia pelas frestas que escapam dos andares inferiores.
Conversamos sobre mulheres,futebol,amenidades:
"Será que chove?",pergunto.
"O tempo anda seco,uma boa chuva não seria de mau grado",respondem.
Revelaram-se sábios.
Como eu,fogem das frases feitas.
Pena refugiarem-se nos lugares-comuns.

Quanto aos livros,mantém-se calados.

Como eu,querem tanto falar...
[Quem os ouviria? Quem me ouviria?]
Pena não serem compreendidos.

Sentado numa velha poltrona

No meu quarto barato
No bairro mais obscuro da cidade,
Eu escrevo.
A chuva esperada resolveu cair,
Irrompendo pelos buracos do teto.
Sobre minha cabeça,
As gotas deslizam.
Uma vontade súbita de chorar.
Com os olhos marejados,
Já não sei se é chuva ou se são lágrimas
A escorrer pelo rosto.
Eu continuo a escrever.
Ao fundo,um ruído:
São os ratos,
A roer.

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário